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quinta-feira, 1 de julho de 2010

«O SACERDÓCIO DE CRISTO»



O Sacerdócio de Cristo

No NT somente o autor da Carta aos Hebreus aplica a Cristo o titulo de sacerdote ou sumo sacerdote. Os evangelos, os Actos dos Apóstolos, São Paulo, as Cartas Católicas ou o AIJOcalipse não apresentam Cristo em ligações com a instituição sacerdotal do AT nem o designam sacerdote em nenhum sentido novo.As cartas de S. Paulo não empregam nunca o vocábulo sacerdote. Parece quererem evitá-lo; para ele, que tão ardentemente propunha a novidade do "caminho do Senhor" (Act 18,25), as instituições cultuais antigas só remotamente se prestavam a estabelecer paralelos cristãos ou a desenvolvimentos doutrinais. Em seu aspecto sacerdotal, a antiga lei não oferecia a Paulo elementos válidos para transmitir ao Israel de Deus.Muita nostalgia devia criar entre os judeo-cristãos (judaizantes) a sobriedade e secularidade da nova fé. Não se lhes pedia a assistência a cerimónias brilhantes onde a sua sensibilidade encontrasse motivo e alívio. Pelo contrário, colocava o acento em viver para os demais, apoiados pela união pessoal com Cristo e pela experiência da fraternidade de fé. "O partir do pão" não se distinguia demasiado da vida diária. A religiosidade tradicional, amante do fausto e do número não encontrava aqui refúgio.Era uma fé sem culto no sentido tradicional. O próprio Cristo, o Messias de Deus, não pertencia à estirpe sacerdotal. Seguindo a tradição profética, tinha denunciado a insinceridade dos dirigentes, tinha estigmatizado o comércio piedoso do templo, porém não se tinha declarado fundador de um sacerdócio novo. Como o sublinha a Carta aos Hebreus, na sociedade de que fazia parte, Jesus era um leigo: "Ora aquele a quem o texto citado se refere (Cristo) pertence a uma tribo (não a de Levi) da qual membro algum se ocupou com o serviço do altar.É bem conhecido, de facto, que nosso Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da qual Moisés nada diz quando se trata dos sacerdotes" (Hebreus 7, 13-14).Não é de estranhar que o israelita tornado cristão se sentisse um tanto desassocegado. Aos olhos da religiosidade antiga, o cristianismo era desconcertante. Recordemos que no século II os gentios acusavam os critãos de ateísmo.O autor da Carta aos Hebreus confronta-se com o problema e procura Wlla solução sem ceder a compromissos. Todo o escrito é uma aplicação concreta da afirmação de Cristo: "Não vim revogar, mas dar cumprimento" (Mt5, 17).A instituição sacerdotal e o ritual do culto tinha ocupado durante séculos um lugar central na espiritualidade de Israel. Que relação tinha tudo isso com Cristo? Até onde se desenvolvera o sacerdócio e o culto? Porém, não era só o aspecto ritual e devociollal que podia causar uma decepção no ânimo do judeo-cristão (judaízante). Circulava também a persuasão de que o Messias prometido havia de verificar em si próprio o ideal sacerdotal antigo.Três personagens se esperavam para os tenlpos finais: o Profeta, o Rei ou Messias de David e o Sacerdote ou Messias de Aarão (Deut 18,18:; 2 Sam 7,12; 1 Sam 2,35; Sir 45,7-9).Uma prova da vigilância expectante encontramo-la no quarto evangelho. Quando João Baptista apareceu no Jordão o povo interroga-se se seria o Messias. As autoridades de Jerusalém enviaram emissários para se certificar da sua identidade. Fizeram-lhe três perguntas: "És tu o Messias (Cristo)? És Elias? És o Profeta?" (Jo 1,19-21). A primeira e a terceira perguntas são claras; quanto a Elias, segundo uma opinião aceitável, representava o sacerdócio escatológico. Ficou aqui expressa a opinião popular do tempo.
Depois de ter participado em um dos baptismos de massa que se slJcediam às exortações de João Baptista, Jesus de Nazaré começa a curar doentes e a pregar. Se bem que oriundo de um obscuro povoado da Galileia onDE Crescera e ainda viviam os seus tàmiliares, a sua personalidade foi-se impondo até atrair a atenção damultidão.É considerado "profeta" (Mc 9,2 ss e parals,), "grande profeta (Lc 7,16), inclusivamente "o profeta" (Jo 6,14; 7,40; Mt2l,ll), segundo a interpretação dada ao texto de Deut 18,18.Também a expectativa do rei messiânico chega a concentrar-se em Jesus. A entrada triuntàl em Jerusalém, os vivas ao" Filho de David" "Mt 21,9). ao "rei de Israel" (Jo 12,13), parecem indicá-lo. Segundo São João, também os peritos na escritura, inquietos, lhe propõe a pergunta: "até quando nos manterás em suspenso? Se és o Messias (Cristo), dize-nos abertamente" (Jo 10,24).Porém, bem pelo contrário, nada na vida de Jesus teve ligação ostensiva com o que era encarado como sacerdotal, se bem que algunlas das suas palavras davam a entender a caducidade da instituição israelita:"Digo-vos que aqui está algo maior do que o Templo" (Mt 12,6); "Destrui este templo e em três dias eu o levantarei (Jo 2,19), aíInnação que, apresentada de maneira algo diferente, surge como acusação no seu processo (Mc 14,58 e parals).De qualquer modo, o povo não viu em Jesus a apoteose do sacerdócio antigo; era de resto impossível, pois não pertencia à tribo de Levi, e se alguns desconheciam a sua origem, era evidente que não tinha recebido a consagração, requisito indispensável para ser membro do sacerdócio.Cristo interpreta a sua morte como um sacrifício, ao chamar ao cálice" o sangue da aliança" (1 Cor 11,25; Mt 26,28 e parals), aludindo ao sangue das vítimas que selou a aliança do Sinai (Ex 24, 6-8); mas pronuncia estas palavras na noite que precedeu a sua paixão e somente no (e para o) círculo reduzido dos doze.O povo não podia ver na sua morte um sacrifício, pois este era um rito consumado em um santuário. A morte de Jesus, longe de ser um ritual, era uma condenação judicial que excluía o executado do povo; "Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro" (Deut 21,23; Ga13,13), e não teve lugar num santuário, antes no campo de execução dos delinquentes comuns, fora da cidade (Heb.13,12)). O sacrifício dava glória a Deus. Ninguém podia imaginar que mn homem ultrajado, hmnilhado, condenado por blasfemo e agitador político, passeado até fora dos muros em companhia de dois tàcínoras e tInalmente cruclllcado - suplício repugnante morresse como sacrifício agradável a Deus.Não há nada que estranhar, portanto, que a pregação dos apóstolos não apresente a Jesus como sacerdote. A ideia que eles próprios tinham do sacerdócio distava demasiadamente do que haviam presenciado em seu Mestre. São Pedro proclamava que Jesus era "o profeta" semelhante a Moisés que Deus havia prometido (Act 3,22), anuncia que Jesus é o Messias (Act 2,36), mas não menciona o seu sacerdócio.A penetração teológica de São Paulo, sem dúvida, não podia deixar de vislmnbrar alguma ligação entre a morte de Cristo e a antiga instituição cultual. Sem chamar "sacerdote" a Cristo, usa categorias cultuais do AT para expor a sua doutrina cristológica.O cordeiro pascal, escolhido sem mancha para simbolizar a pureza da vítima, serve de termo de comparação para Cristo, incluíndo o aspecto sacrifícial: "Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado" (lCor 5,7). A imagem do cordeiro divulgou-se tanto que se emprega em 1 Pedro 1,19, faz-se central no Apocalipse e o evangelista João chega a pô-la na boca do Baptista logo nos primeiros alvores da vida pública de Jesus, se bem que talvez mais em referência ao Servo de Javé (ls53,7) do que ao cordeiro pascal.
Para São Paulo, o sangue de Cristo obtem o perdão dos pecados, e assim o "propiciatório" ou cobertura da arca do AT, onde o sumo sacerdote derramava o sangue da vítima para obter o perdão do povo (Lev 16), passa a ser símbolo de Cristo na cruz (Rom 3,23). Em Efésios 5,2 compara-se a entrega de Cristo à vítima de odor agradável que se oferecia a Deus na antiga aliança,No capítulo 17 do Evangelho de João pronuncia Cristo a "chamada "oração sacerdotal"; se bem que o termo não apareça no texto, ao orar pela consagração dos seus, o Senhor actua como sacerdote, ainda que não ritualmente, conforme a índole de seu sacerdócio.Também São Lucas atribui a Cristo um gesto de sabor sacerdotal. No relato da ascensão, Cristo ressuscitado abençoa os seus discípulos; comparação implícita com o sumo sacerdote judeu, que depois do sacrifício levanta as mãos para abençoar o povo (Lev 9,22; Sir 50,20).A Carta aos Hebreus, por seu lado, afirma nitidamente o sacerdócio de Cristo. O primeiro facto que contrasta com a concepção comum do sacerdócio na história das religiões é que Cristo não se mostra como um segregado, que pelo facto de seu sacerdócio não se erige em casta àparte nem funda uma casta entre os seus seguidores.O sacerdote judaico pertencia a uma casta social bem determinada. A separação baseava-se na linhagem. Pertenciam ao clero os membros da tribo de Levi; eram sacerdotes os descendentes de Aarão pela estirpe de Sadoc (Ex 29,29.30).A separação entre o povo e o clero ficava estabelecida pelo acto de consagração. Em Êxodo 28 descreve-se com todo o detalhe as vestes do sumo sacerdote. O capítulo 29 é dedicado a descrever o rito consecratório de Aarão e seus filhos. Com este cerimonial, cuja realização se descreve em Levítico S e 9, o sacerdote ficava constituído em pessoa pública e sacra, consagrada a Javé.No cumprimento de sua missão, o sacerdote israelita estava da parte de Deus; se bem que mediador, competia-lhe ocupar-se mais do culto e defender os direitos de Deus do que compadecer-se do povo extraviado. Algumas passagens do AT chocam pela crueldade a que chegaram os sacerdotes aarónicos em nome de Javé. Moisés incitou-os a castigar o povo que havia adorado o bezerro de ouro. Caíram uns três mil homens, e esta matança valeu-lhes a consagração e a benção divina (Ex 32,26-29).Em Números 25 descreve-se outro acto de idolatria e as suas consequências. Faz-se menção especial de Fineias, que atravessou com uma lança um israelita e uma prostituta cananeia; isto valeu-lhe ser proclamado sumo sacerdote (Sir 45,23-26).O Sacerdote do AT era pois, membro de unIa casta, separada do resto da comunidade por três divisórias: o sangue ou pertença a uma linhagem especial; a consagração, conferida com ritos peculiares e a missão, mais preocupada em salvaguardar os direitos de Deus do que salvaguardar a salvação do homem.Cristo, o novo sacerdote, derruba as barreiras da separação. Primeiro a da linhagem. Cristo não nasce da tribo de Levi, não é descendente de Aarão. Abolindo a exclusividade, abre o sacerdócio a todo o homem, ultrapassando as barreiras étnicas.Por isso a Carta aos Hebreus insiste sobre a sua comunidade de origem com os demais homens: "o que consagra (sacerdote) e os consagrados são da mesma linhagem" (2,11), "os filhos (de uma tàmilia) têm em comum a mesma carne e sangue, por isso ele também participou de uma nova condição" (2,14), "não rejeita chamar irmãos aos homens" (2,12).Desaparece a consagração ritual. Cristo não necessita de ritos para chegar ao seu sacerdócio. Como afirma a Carta aos Hebreus, os ritos eram ineficazes (10,1-4; 10, l1).Porque, no fim de contas, os ritos eram inefícazes, a consagração de Cristo não foi ritual, antes foi existencial; consistia na perfeição a que chegou a
sua humanidade como resultado da sua fidelidade total à vontade do Pai e da aceitação da sua morte para cumprir o encargo de Deus (5,7-11). O termo perfeição" (teléiosis) usa-se no AT grego (versão dos LXX ou septuaginta)para designar a consagração sacerdotal de Aarão, e significa maturidade total, realização plena. Essa transformação do seu ser constitui a consagração sacerdotal de Cristo.Em Cristo, finalmente, a fidelidade a Deus não exige nunca a ruptura com os homens. Pelo contrário, a essência de seu sacerdócio é a misericórdia, a compreensão das debilidades alheias. Por isso tinha que parecer-se com todos os seus irmãos: "Como ele passou pela prova do sofrimento, pode ajudar os que se encontram na mesma prova" (Heb 2,17.18). Exceptuando o pecado, foi provado em tudo, como nós; pode assim compadecer-se das nossas debilidades: "Aproximemo-nos então sem temor do trono da graça: obteremos misericórdia e encontraremos graça que nos ajude no momento oportuno" (Heb 4,15.16).Este é o Jesus que apresentam os evangelhos, o que se sentava à mesa com ladrões e pessoas sem credibilidade (Mt 9,l0-13).Ele nunca repreendia os pecadores a menos que pretendessem, como os íàriseus, canonizar os seus vícios.Cristo concentra em si a humanidade inteira. O que sucede nele é modelo do que deve suceder em todos os homens. Ele é o paradigma da raça humana, o primeiro de muitos irmão, o seu precursor (Heb 6,20) e o seu pioneiro (2,10). Jesus Cristo é o Filho único, para que todos os homens sejam filhos de Deus; é um com o Pai, para que todos sejam um; recebe o Espírito, para O derramar sobre toda a criatura; é Senhor, para que todos reinem; morreu e ressuscitou, para que todos os que morrem ressuscitem com Ele.O sacerdócio de Cristo é causa e origem do sacerdócio de todos; àqueles que Ele consagra, comunica a perfeição fundamental de fidelidade a Deus que é o sacerdócio (Heb 10,14). O seu sacerdócio é o sacerdócio da vida, entregue aos homens por fidelidade a Deus; o seu lugar sagrado é o mundo; o seu tempo sagrado é a história, iluminada pela esperança,sua oferenda e seu sacerdote, o homem, dedicado a Deus e ao próximo. A consagração recebe-se no baptismo, que incorpora a Cristo, à sua morte e à sua vida. O exercício desse sacerdócio é a vida inteira: alegria e dor, festa e arrelia.

ALBERTO CASTRO FERREIRA


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