Portugal levou 156 anos a adaptar-se ao figurino democrático.
A sucessão de mitos terminou com o abrilismo.
Hoje existem, finalmente, as condições básicas para o funcionamento real do sistema de sufrágio, para um equilíbrio genuíno dos centros de Poder, para a existência de um grau de consciencialização aceitável do cidadão comum, para a existência de meios de comunicação minimamente independentes, para a usufruição, no dia-a-dia, das liberdades fundamentais.
A oligarquia concreta, disfarçada de democracia, deu lugar, pela primeira vez, a um esquema democrático, frágil, imperfeito, inacabado, inexperiente e ameaçado, oscilando ainda entre a tentação autoritária e o sobressalto anárquico, mas autêntico, assente nas componentes sociais indispensáveis, com Direita, Centro, Esquerda, o sistema mais adequado à maneira de ser do Português, cosmopolita, generoso, pacato, hospitaleiro, sentimental, sociável, bonacheirão, individualista, apegado às suas coisas.
Nesta mudança de século, coincidente com o início de uma revolução, à escala mundial, só comparável à que se desencadeou entre o fim do século XVllI e o princípio do século XIX, o nosso destino é o desta Nova Europa, expurgada dos velhos fantasmas e em luta por um lugar ao sol no planeta Terra, em gestação rapidíssima.
O grande problema do Povo Português, no seu conjunto, é o da abertura imediata e sem qualquer hesitação a uma nova mentalidade, em consonância com o novo contexto em que vivemos.
Como?
Antes de mais nada, assumindo, em pleno, a verdade - o único processo de vacinação eficaz contra o regresso das mitologias.
O trabalho sectário de falsificação da História, por imposição de guerras extintas, deixou de ter sentido. Democracia significa maioridade e, assim, direito à verdade, seja ela qual for, por mais implacável que surja relativamente às "histórias edificantes" e aos múltiplos "milagres de Ourique", com que se foram compensando as frustrações colectivas.
As grandes massas provincianas entraram, finalmente, no concerto nacional.
Terminada a Guerra Fria e, com ela, os álibis cómodos, a sociedade dita ocidental, de que fazemos parte, terá de se transformar, por uma questão crucial de sobrevivência, enfrentando os dois tumores malignos que ameaçam destruí-la: a anarquia e o banditismo.
A democracia, assentando a lei na legitimidade do sufrágio livre,
Por isso, o ideal máximo do sistema democrático é o acatamento total da lei, porque só assim é garantida a vivência concreta da liberdade pelo conjunto dos cidadãos.
Desde que exista sempre a possibilidade de, maioritariamente, se modificar a lei, a liberdade não sofre. Mas tudo se baseia na capacidade de a fazer cumprir, sempre, pelos órgãos respectivos.
O banditismo, sob a forma máxima de crime organizado, incluindo tráfico de droga, prostituição, formas modernas de escravatura, desvio de menores, sequestro, homicídio e roubo, é um atentado permanente à liberdade dos cidadãos e tende a transformar a democracia numa farsa, na medida em que, pela degradação concreta da vida quotidiana, principalmente nos grandes centros, cria uma situação de facto: a lei da selva. A disparidade dos meios de fortuna, única garantia de segurança pessoal, passa a dividir, da forma mais injusta e desesperadora, os diversos estratos sociais.
É absolutamente falso o 'argumento' de que a expansão da anarquia e do banditismo é o preço inevitável da liberdade democrática, como é puro cinismo adiar as medidas urgentes, no sentido de a conter, para as "calendas gregas" da resolução futura de certos problemas freudianos, hipoteticamente na origem do crime.
A mobilização adequada da opinião pública e um investimento, a sério, nos meios sofisticados, já existentes, investimento retirado da manutenção da dimensão actual de umas Forças Armadas, apenas vocacionadas para a defesa de um território que ninguém ameaça, seriam mais do que suficientes para reduzir à ínfima espécie essa nova lepra, em contínuo crescimento entre nós, de há uns.20 anos a esta parte.
A pergunta pertinente, crucial, que hoje se põe é esta: chegados ao fim deste percurso de século e meio, semeado de 'sangue, suor e lágrimas'; obtida, enfim, a normalização da vida nacional, vamos cair nos mesmos erros das nações que caminharam à nossa frente?
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