segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

«Particularismo Judaico vs. Universalismo Cristão» - 'Os primeiros 150 anos de Cristianismo'



in «CARMELO LUSITANO» , 
nº 5 - 1987

pags. 35-47
«Particularismo Judaico vs. Universalismo Cristão»


(Os Primeiros 150 Anos de Cristianismo)


INTRODUÇÃO


Podemos ler em «Le Judaisme et le Christianisme Antique» de Simon-Benoit», pág. 93: Os primeiros cristãos não têm a impressão de separar-se do judaísmo, cujas prescrições observam escrupulosamente. Contentam-se em dar um nome ao Messias anónimo que os judeus esperavam e em desdobrar a esperança tradicional da obra messiânica». Dito por outras palavras: os apóstolos não tinham conseguido, logo após a paixão de Jesus, superar as ideias puramente nacionais do reino de Deus.

Nos «Atos dos Apóstolos», pela boca de Jesus ressuscitado, e por solicitação dos discípulos, expressa-se a esperança de uma restituição do reino de Israel, se bem que este seja suscetível de extensão ao resto do mundo:

«Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo» (At. 1, 7-8).


Por outro lado, resulta sumamente significativo o facto de, entre os primeiros simpatizantes do Cristianismo na Palestina, se encontrarem membros da seita dos fariseus, como Gamaliel, 'Doutor da Lei, respeitado por todo o povo' (At. 5, 34).

Sobre estes objetivos puramente judaicos que a primeira pregação apostólica se havia proposto alcançar, tomara corpo o 'Judeo Cristianismo', como «ramo da Igreja antiga que pretendia unir a fé em Jesus Messias com uma observância rigorosa da Lei judaica, e que no essencial se espalhou em Israel, mas não só aí» (Simon-Benoit, Ob. cit.; pág. 104).

A seguir se verá como o prestígio de Paulo, principal artífice da universalidade da pregação, atuou de forma decisiva na progressiva separação do Judeo Cristianismo, cujo destino havia de ser, ou a reabsorção pela Sinagoga ou a incorporação na Igreja dos gentios.


CAP . I

O JUDEO CRISTlANISMO

Nascido em meio judaico, mesmo quando entra em conflito com o judaísmo oficial, o primeiro cristianismo é judaico na língua, na cultura e na política . É com Paulo que uma rutura se dará entre judeo-cristãos e pagano-cristãos. Porém, mesmo então persistirá em Jerusalém e na Palestina um grupo de Cristãos ligados às observâncias judaicas. O seu chefe incontestado é Tiago, um parente do Senhor. É ele o chefe da Igreja local de Jerusalém. Hegesipo apresenta-no-lo como assíduo no Templo, praticando o 'nazireato' (voto de abstinência dos Israelitas piedosos). É ele a quem a literatura judaico-cristã, o «Evangelho dos Hebreus», o «Evangelho de Tomé», os escritos Clementinos, o «Apocalipse de Tiago», descobertos em Nag Hammadi, põem em primeiro plano na Igreja.

A hegemonia do Judeo Cristianismo em Jerusalém e na Palestina persistirá até à repressão da última revolta judaica no tempo' do Imperador Adriano.


Cite-se o texto de Eusébio de Cesareia: 'Soube por documentos escritos que até ao cerco dos judeus sob Adriano, houve em Jerusalém uma sucessão de quinze bispos, que se diz terem sido todos Hebreus de velha ascendência. Com efeito, toda a Igreja de Jerusalém era então composta de Hebreus fiéis' (H.E., IV, 5, 2). Eusébio apelida-os de «Bispos da circuncisão» (IV, 5, 3).

A partir de Adriano, Jerusalém torna-se uma cidade grega e será doravante uma Igreja governada por Gregos. Mas os judeo-cristãos continuarão a subsistir, particularmente em Hebron e Nazaré. Permanecerão particularmente ligados aos lugares que interessam à tradição familiar de Jesus, antes de serem redescobertos no seco IV; Os seus lugares de culto, as suas estelas funerárias, as suas fórmulas litúrgicas foram estudadas nos últimos anos pelos Padres Testa e Bagatti (1)

Porém, desligados da Igreja oficial de Jerusalém, considerados como judaizantes, acabaram por se extinguir.

Não é somente em Jerusalém e na Palestina que o Judeo-Cristianismo é dominante durante o primeiro século da Igreja. Em todo o lado a missão judaico-cristã parece ter-se espalhado antes da missão paulina. É bem isto o que explica que as «Epístolas» de Paulo façam alusão a um conflito. São os mesmos os adversários que encontra, na Galácia, em Corinto, em Colossos, em Roma, em Antioquia. Completando os dados constantes das 'Epístolas' paulinas com as informações que os escritos não canónicos arcaicos oferecem, podemos fazer uma ideia da expansão do judeo-cristianismo. De facto, os missionários cristãos - as Epístolas de Paulo disso nos dão testemunho - pregavam primeiro aos judeus nas sinagogas. As primeiras comunidades, portanto, eram inicialmente constituídas por judeo-cristãos. Só a seguir se formavam as comunidades de convertidos do paganismo. E a coexistência destas duas comunidades é um dos problemas fundamentais do cristianismo antes do ano 70.

De resto, Papias testemunha na Frígia um judeo-cristianismo de tendência milenarista que persistirá até ao fim do século segundo. Na Grécia, a 'Primeira aos Coríntios' mostra face à comunidade paulina uma comunidade ligando-se a Pedro e uma outra, mais deliberadamente judaico-cristã, a Apolo. Roma é um centro importante do judeo-cristianismo, como o testemunha a liturgia muito arcaica conservada na 'Epístola de Clemente' e as tradições catequéticas do «Pastor» de Hermas. Suetónio e Tácito veem na comunidade cristã uma seita judaica. Paulo foi provavelmente vítima desses judeo-cristãos, como pensa Cullmann (2).

Não temos informações diretas sobre as origens do Cristianismo Africano. Mas a importância da comunidade judaica leva a pensar que a primeira evangelização é judaico-cristã. Ê possível, como mostrou Braun, que os cristãos tenham utilizado a tradução judaica da Bíblia em latim. O cristianismo africano afigura-se expressão duma síntese do espírito semita e do espírito latino, que lhe confere uma robusta originalidade face ao cristianismo romano, marcado pelo helenismo. As origens da Igreja do Egipto são igualmente obscuras. Uma coisa é certa: Encontra-se fora da missão paulina. Brandon e Hornschuh sublinharam as razões que os levaram a ver aí uma missão judaico-cristã. O «Evangelho dos Hebreus» e as tradições rela­tadas por Clemente de Alexandria ligam-se a este judeo-cristianismo original, antes da aparição do Cristianismo alexandrino de inspiração helenística.

Estas comunidades judaico-cristãs da bacia mediterrânica constituem o essencial da Igreja até ao ano 70. Durante este período o pagano-cristianismo permanece minoritário' e contestado. A guerra judaica e a queda de Jerusalém em 70 alteraram completamente a situação. Tendo os judeus sido desacreditados no Império, os cristãos tendem a desligar-se deles.

As cristandades helenísticas tomarão então a primazia. Paulo conseguirá uma vitória póstuma!

O cristianismo separar-se-á sociológica e politicamente do judaísmo. Tornar-se-á o 'terceiro povo'. Porém, até 140 e à repressão da última revolta judaica, continua a dominar culturalmente. É a grande época da literatura judaico-cristã. Em Jerusalém, a autoridade continua a pertencer à família de Jesus. Justino atesta, por volta do ano 140, a existência de cristãos circuncisos.

Até aqui viu-se a expansão judaico-cristã na bacia mediterrânica.

Deixou-se de lado um domínio desta missão que de seguida devia ter uma situação privilegiada, porque não se encontrou com a missão paulina; é o das regiões situadas a Oriente da Palestina. A origem judaico-cristã da Igreja destas regiões é tanto mais certa quanto a língua comum era o aramaico, que era também a língua dos judeo -cristãos de Jerusalém. Decerto, os «Actos dos Apóstolos» nada nos dizem da evangelização destas regiões, salvo o relato do batismo do eunuco da rainha Candace, que era um árabe. Contudo, podemos entrever qualquer coisa através das tradições ulteriores, que necessitam de ser controladas, mas que conservam elementos históricos certos, apesar das deformações da imagem transmitida pelos Ocidentais.

A primeira região com interesse é a Transjordânia. Contudo, estes judeo-cristãos encontraram-se muito rapidamente desligados da 'Grande Igreja'.

São eles a quem Epifânio designa com o nome de Nazarenos e de quem nos diz que observam a Circuncisão e o Sábado. Possuíam um Evangelho em caracteres hebraicos, de que S. Jerónimo nos legou fragmentos. A «Didascália dos Apóstolos» no século terceiro mostra-os vivendo em Bossa na comunidade judaica, e separados da comunidade cristã, que rejeitava as observâncias. Orígenes discutirá com um bispo árabe, para quem a alma reside no sangue.

Encontram-se na Transjordânia e na Síria grupos mais curiosos.

Santo Ireneu menciona os Ebionitas, judeo-cristãos observantes, mas que praticavam também banhos quotidianos de purificação, usavam para a Eucaristia pães ázimos e água, rejeitavam o uso do vinho, professavam uma doutrina dualista e viam em Cristo o verdadeiro profeta, assistido por um arcanjo. Está-se aqui em presença de judeo-cristãos, mas que vêm dum judaísmo próximo do modelo dos Sadocitas. É tão inexato identificá-los, como o faz Schoeps (3), com o judeo-cristianismo de Jerusalém como fazer deles gnósticos. Na realidade o judeo-cristianismo batista é igualmente representado pelos Elkaraítas.

É também à missão judaico-cristã que se tem de referir o Cristianismo de Osrocêna e de Adiabêna. Se a lenda, que nos transmite Eusébio do envio pelo próprio Cristo de missionários ao rei de Edessa, Abgar, faz na realidade referência à conversão de um outro Abgar no fim do século segundo, então tem de se aceitar que a tradição segundo a qual o Apóstolo Tomé teria evangelizado a região, tem a apoiá-la dados históricos. Os documentos mais antigos que possuímos sobre o 'cristianismo edessiano', o «Evangelho de Tomé», o «Canto da Pérola», contido nos «Atos de Tomé», as «Odes de Salomão» remontam em parte ao fim do primeiro século e testemunham um judeo-cristianismo característico. Um dos traços do judeo-cristianismo siríaco é o seu ascetismo. E este carácter continuará vincado até ao século sexto. Mas a estranha obra de Bardesano, no fim do século segundo, atesta as diversidades de formas do judeo -cristianismo, mesmo em Edessa. Para além de Edessa, o Cristianismo penetrou em Adiabêna, onde existia uma comunidade judaica importante e continuou decerto bem depressa a sua rota até à índia, onde Panteno afirma ter encontrado, em meados do século segundo, um Evangelho em caracteres hebraicos.



CAP. II

S. PAULO E O MISTÉRIO DE CRISTO

O admirável apostolado de S. Paulo conheceu a contradição. Não só da parte dos pagãos, fáceis de sugestionar contra esta nova seita judaica, denunciada pelos próprios judeus, mas também da parte de outros cristãos. Esse antagonismo entre judeo-cristãos (convertidos do judaísmo, mas fiéis às práticas da Lei) e as Igrejas fundadas por Paulo na Diáspora, nas quais a maioria era constituída de pagãos convertidos, tem uma importância muito grande no Novo Testamento, para que se possa passá-lo em silêncio, por mais doloroso que ele seja.

Quanto ao conflito propriamente dito, temos o testemunho de Paulo, inevitavelmente apaixonado, em razão do seu temperamento e da importância legítima que dava à «liberdade» dos convertidos da gentilidade face à Lei judaica. Os textos mais importantes são a 'carta aos Gálatas', a parte final da 'segunda carta aos Coríntios' (cc.10-12) e a vigorosa advertência do c. 3 da 'carta aos Filipenses' (vv.2-16). Dentre esses textos vibrantes, aquele que se denomina 'Conflito de Antioquia' (Gal 2,11-14) merece atenção especial. A atitude que Pedro julgou que podia tomar em dada ocasião era uma «dissimulação» inadmissível e Paulo di-lo claramente.

Ao testemunho notável, mas apaixonado, de Paulo, o Novo Testamento acrescenta as atas do «concílio de Jerusalém» (At c.15). A narração de Lucas é de uma discreta serenidade. Sem ignorar as discussões e as intrigas dos judeo-cristãos a respeito dos convertidos de Paulo, o autor dos «Atos» insiste na resolução pacificadora desse problema difícil.

O capítulo 15 dos «Atos» traz-nos dois problemas. Primeiramente, um problema histórico: - Houve apenas um encontro, que pôs tudo em ordem, como sugere Lucas? Ou teria o autor dos «Atos» condensado em um só relatório, cheio de intervenções, uma série de encontros, no decurso dos quais se teria chegado, penosamente talvez, a um acordo? O outro problema é teológico e refere-se ao significado, para a difusão da Igreja no mundo pagão, da «liberdade» que Paulo conseguira com dificuldade para as suas Igrejas.

A tomada de posição de Tiago, na presença de «toda a Igreja» de Jerusalém, de Paulo, de Barnabé e dos representantes das Igrejas fundadas na gentilidade, e a carta que daí resultou foram suficientes para restabelecer a paz? Não há clareza sobre isso; parece, contudo, que alguns judaizantes, violentamente hostis (cf. Act 21,17-25), continuaram, com a sua obstinação, a perturbar as Igrejas de Paulo, denunciando simultaneamente o seu modo de agir, a sua doutrina e a sua pessoa.

No plano teológico, o 'decreto de Jerusalém' é de grande importância, porque avaliza a interpretação de S. Paulo sobre o papel da Lei na salvação. A expressão da epístola aos Gálatas é decisiva: «A Lei foi o nosso pedagogo, para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados pela fé» (Gal 3,24). Entre a promessa, à qual Abraão aderiu pela fé (3,15-18), e Cristo que dá à fé dos que nele creem o «poder de se tornarem filhos de Deus» (3,26), a Lei não pode ter mais que um papel secundário e transitório: «Chegada, porém, a fé, não estamos mais sob o pedagogo» (3,25).

A decisão tomada em Jerusalém e oficialmente notificada (ao menos a algumas Igrejas, como às de Antioquia, da Síria e da Cilícia, onde os choques entre judeo-cristãos e pagãos convertidos eram certamente mais frequentes), veio facilitar o avanço do cristianismo no mundo pagão, como se verá no capo III desta exposição.

Afirma Bornkamm: «o resultado da assembleia dos Apóstolos em Jerusalém é tão importante no plano da teologia como no da história da Igreja e, mesmo, da história universal. A unidade da Igreja foi preservada e um duplo perigo foi evitado: que o Cristianismo de Jerusalém se incrustasse no seu particularismo, até tornar-se uma seita judaica - e que o cristianismo helenístico se desagregasse em uma multidão de seitas iniciáticas, à margem da história» (1).

CAP. III

O CRISTIANISMO GRECO-ROMANO

Pelo que foi exposto anteriormente se compreenderá que de facto não é no mundo arameu oriental que o cristianismo devia conhecer a sua expansão. É no mundo mediterrânico greco-romano que ia ter uma grande fortuna. É neste meio que vai separar-se das suas origens semíticas e exprimir-se num novo universo cultural. O papel decisivo nesta Ordem foi desempenhado, como já se explicou, por Paulo. Ele próprio judeu, mas originário de Tarso, onde se falava grego, depois de começar a pregar entre os judeus, se entregou à evangelização dos pagãos. Compreendeu que, para os trazer a Cristo, era necessário desligar a mensagem cristã da sua ganga judaica. Porém, durante a sua vida a expansão do cristianismo em meio pagão era ainda muito limitada. Como já se viu é o judeo-cristianismo que domina.

A passagem do meio judaico para o meio helénico far-se-á entre os anos 70 e 135, aproximadamente. A queda de Jerusalém em 70 tinha abalado a irradiação do judaísmo e ajudado a missão cristã a libertar-se. Confundido ainda com os judeus, sob Domiciano, o cristianismo ganha progressivamente uma fisionomia própria. É o 'terceiro povo'. Os convertidos vindos do paganismo tornam-se mais numerosos. Disso nos dão testemunho os autores pagãos do tempo, como Plínio, o Moço, e Tácito. É enfim sob os reinados de Antonino (138-161), de Marco Aurélio (161-180) e de Cómodo (180-193) que o cristianismo vai entabular com o mundo helenístico e romano esse grande diálogo que levará à conversão de todo esse mundo.

As circunstâncias eram particularmente favoráveis. O mundo greco-romano de então era particularmente aberto e liberal. Tinha curiosidade de doutrinas religiosas e filosóficas. As escolas filosóficas tradicionais transmitem o ensinamento dos grandes mestres. Os platónicos têm Caios e Albinos, Tauros e Attikos, os aristotélicos Alexandre de Afrodísia, os estóicos Possidónio e Fronton. Estão na moda as palestras filosóficas, como as de Máximo de Tiro ou Dion de Pursa.

A medicina floresce com Galeno, a astronomia com Ptolomeu.

Simultaneamente as religiões orientais espalham-se pelo Império. É o tempo dos mistagogos como Apolónio de Tiana, dos «Oráculos Caldaicos» e dos «Escritos herméticos». Certos espíritos como Numenius, unem a tradição filosófica e estas correntes místicas. Uma lufada de liberdade sopra por toda a parte. Luciano de Samosata é uma boa testemunha desta liberdade, que contrasta com a severidade do período precedente, o de Plutarco e de Séneca.

É face a este mundo que o Cristianismo vai ter de se definir.

Essa será a obra dos «Apologistas». Assim se designam obras de diversa natureza, mas que têm todas em comum ser uma apresentação do cristianismo ao mundo pagão. Constituem uma literatura de cariz missionário, que se inspira simultaneamente na pregação cristã primitiva, na literatura missionária judaica e nos protrípticos filosóficos. Temos uma parte da «Apologia» de Ariston. O mais importante dos Apologistas é Justino, com as suas duas «Apologias» e o seu «Diálogo com Trifão». Mas ao lado disto há o Tratado «A Antolícos» do Bispo de Antioquia, Teófilo, o «Discurso aos Gregos» de Taciano, a «Apologia» de Atenágoras, a «Epístola a Diogneto», o «Protríptico» de Clemente de Alexandria. Apenas temos um fragmento da «Apologia» de Melitão de Sardes. Eusébio menciona o «Discurso aos Gregos» de Apolinário de Hierópo1is e a «Apologia» de Milcíades.

Através de diferenças de pormenor, estas obras apresentam uma atitude comum de que é necessário reter os traços principais.

Esta atitude é antes de mais uma denúncia do helenismo sob a dupla forma do paganismo popular e da filosofia sábia. No que respeita ao primeiro, a crítica incide sobretudo sobre os mitos. Os cristãos não tinham que fazer mais do que inspirar-se no que já faziam escritores pagãos como Luciano. Como se sabe não se privaram de o fazer. Justino, Teófilo, Atenágoras, Clemente e, sobretudo, Taciano, atacam a fundo o que de ridículo ou de imoral existe na mitologia grega. Conhecem de resto muito bem as interpretações alegóricas. A crítica também se interessa pelos cultos idolátricos, fabrico de ídolos, sacrifícios, coroas de flores, incenso. Isto atingia as próprias estruturas da sociedade antiga, fundada na religião da família e da cidade. Para Justino e Taciano, estes cultos dirigem-se a demónios que enganam os homens de maneira a fazerem-se adorar por eles.

Mas não é somente o paganismo popular, são também as filosofias da época que os Apologistas criticam. Temos antes de mais os ataques pessoais entre os filósofos. Taciano colecionou o que pôde encontrar de anedotas escandalosas a seu respeito. As suas contradições sublinham a incerteza das suas opiniões. Estão mais interessados na originalidade do que na verdade. A estas críticas gerais vem acrescentar-se a crítica dos erros próprios a cada sistema. Platão acreditou na metempsicose. Aristóteles desconhecia a imortalidade da alma e a Providência, os Estoicos têm uma conceção materialista de Deus, os Epicuristas apenas conheciam o Acaso. Estas acusações dirigem-se essencialmente aos grandes sistemas tradicionais, tal como eram ensinados nas escolas. Dirigiam-se também aos filósofos contemporâneos que se filiavam nessas grandes correntes. O platonismo que Justino ataca é o dos platónicos intermédios, como Albinos ou Attikós. E descreve-nos no início do «Diálogo» os aristotélicos do seu tempo. Face às ilusões e aos erros do paganismo, os Apologistas não vão apresentar o cristianismo como uma nova religião, mas como a verdadeira religião. Justino faz apelo à razão (logos) daqueles que amam a sabedoria (filosofia)! 'Se vos parece que esta doutrina é conforme à razão e à verdade, tomai-a em consideração' (I ApoI. 68,1). O conteúdo da mensagem cristã é acima de tudo o Deus verdadeiro, «único, eterno, invisível», como escreve Atenágoras (Supl., 10). Ele é transcendente à totalidade do Universo, que é sua criação.


Ele criou os homens para os associar à sua vida pela ressurreição. Mas só aqueles que tenham sido justos terão parte na vida eterna. Este destino está dado ao homem desde as origens. Mas os homens, enganados pelos demónios, viraram-lhe as costas. Eis porque o Filho de Deus veio para destruir o poder dos demónios e estabelecer definitivamente a salvação dos homens.


CONCLUSÃO

A decisão da assembleia de Jerusalém (At c.15) escapa ao oportunismo ou ao desejo de uma difusão mais fácil, porque se funda na convicção de que só a fé em Jesus Cristo obtém a salvação outrora prometida a Abraão. A promessa era incondicional, favor totalmente gratuito da iniciativa divina. Transformar a Lei em condição da promessa era, de certo modo, recusar a gratuitidade desta e fazer Deus depender do homem. Com isso o judeu, praticando rigorosamente a sua Lei, tornava-se detentor de direitos sobre o próprio Deus; reivindicava um monopólio, limitando o dom de Deus a um grupo étnico, a um povo de praticantes. Os pagãos não podiam ter esperança de alcançar a graça a não ser filiando-se a esse povo, adotando os seus costumes e as suas interdições. Singular restrição de uma promessa que, através de Abraão, visava «todas as nações da terra», abençoadas no seu ancestral (Gn 17, 3-7).

A fé, transmissa pelo baptismo, é uma aceitação, sem restrições, de uma promessa feita sem condições. E feita a todos: porque «Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade» (l Tim 2,4).

Todos são chamados à conversão, porque todos pecaram e têm necessidade do perdão divino (Rom 3,9-20); todos são chamados à fé em Cristo, único e universal Salvador (At, 4,12); todos são chamados a receber dele, depois de reconciliados com Deus (2Cor 5,19), a vida de filhos de Deus, que a promessa longínqua anunciava (Gn 3,14-15). «Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus», porque «por ele nós nos tornamos justiça de Deus» (2Cor 5,21).

Pela fé, e não pela observância da Lei... Por uma fé que, naquilo que exige, está ao alcance de todo o homem que consente em recebê-la da graça do seu Salvador. Os «Atos» evocam este universalismo mostrando a difusão do Evangelho que, anunciado primeiro aos judeus, teve grande penetração no mundo pagão, chegando até à casa do Imperador (Cf. Fil. 4,22)1. ..

A difusão geográfica do Cristianismo, tornada possível graças à decisão da assembleia de Jerusalém, manifesta a liberdade soberana e irreprimível da mensagem evangélica: «A palavra de Deus não está algemada» (2Tim 2,9). Liberdade que nenhum poder humano pode restringir, como também não o podem quaisquer culturas, tradições ou leis.

Isto exige um desapego, que se impõe constantemente - e hoje também - à Igreja de Cristo. Como ela soube, nos primeiros anos, desprender-se dolorosa e trabalhosamente do judaísmo, a Igreja de Cristo encontra, em cada período importante da sua história, o dinamismo missionário que lhe impõe, como ao seu ancestral Abraão, a renúncia ao clima em que crescera. Libertação do «clima» cultural e jurídico da «romanidade» clássica no tempo das invasões dos bárbaros; libertação do quadro carolíngio para abrir-se às «nações», no fim da Idade Média; o voo missionário no período contemporâneo. A passagem às nações não termina nunca. Sempre haverá nações novas e novas culturas. O princípio firmado pelo Concílio de Jerusalém continua presente: ninguém deve ser obrigado a tornar-se judeu para ser cristão. Ninguém deve ser obrigado a sujeitar-se a uma transplantação cultural para ter acesso à fé Cristã. Porque o «Povo de Deus encontra-se entre todos os povos da terra, já que de todos recebe os cidadãos, que o são dum reino não terrestre mas celeste» (L.G. 13).


BIBLIOGRAFIA


Obras diretamente consultadas:

BAUS, K. - «De la Iglesia Primitiva a los comienzos de la Gran Iglesia», em «Manual de História de la Iglesia», pubicado sob a Direcção de HUBERT JEDIN, tomo primeiro. EDITORIAL HERDER, Barcelona, .1980.



DANIÉLOU, J. - «Des origines à la fin du troisieme siecle», em «Nouvelle Histoire de l'Eglise I: Des origines à Saint Gregoire le Grand», ÉDITIONS DU SEUlL, Paris, 1963.

- «Théologie du Judéo - Christianisme», DESCLÉE CIE, ÉDITEURS, Tournai, 1958.

- «Message évangélique et Culture hellénistique», DESCLÉE CIE, ÉDI­TEURS, Tournai, 1961.

- «Les origines du Christianisme latin», LES ÉDITIONS DU CERF, Paris, 1978.

- «L'Église des Apôtres», ÉDITIONS DU SEUlL, Paris, 1970.


BATIFFOL, P. - «L'Église naissante et le Catholicisme», J. GABALDA, ÉDITEUR, Paris, 1927.


GÉRARD, I. et LEBAR, J. - «Quand Jérusalém Brûlait» (En l'an 70, le 29 aout) , ÉDITIONS ROBERT LAFFONT, Paris, 1970.


HAMMAN, A. - «La Vie Quotidienne des Premiers Chrétiens» (95/197), HACHETTE, Paris, 1971.


SIMON, M. et BENOIT, A. - «Le Judaisme et le Christianisme Antique» (d'ANTIOCHUS Epiphane à Constantin), P.U.F., Paris, 1968.


BIBLIA SAGRADA (Capuchinhos).


CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO lI, Constituições - Decretos - Declarações, A.O., Braga, 1967.


Obras de consulta indireta (excertos importantes transcritos nas obras acima referidas):


BORNKAMM, G. - «Paul, apôtre du Christ Jésus», trad. fr., EDIT. LABOR ET FIDES, Genebra, 1971.


FÉRET, H.-M. - «Pierre et Paul à Antioche et à Jérusalém. Le 'conflit' des deux apôtres», CERF, Paris, 1955.


TROCMÉ, E. - «Le livre des Actes et l'histoire, Études d'histoire et de philosophie religieuse», P.U.F., Estraburgo, 1957.


BRAUN - «Jean le Théologien et son Évangile dans l'Église ancienne», Paris, 1959.


CULLMANN, O. - «Saint Pierre», Paris, 1952.



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