domingo, 7 de junho de 2009

De «DIÁRIO DE MIGUEL TORGA» do XII Volume



COIMBRA,19 de Julho de 1974-Tem sido de caixão à cova. Pobre país! E o que estará ainda para vir! Mas não posso, nem quero, perder o pé na pátria. Terei de enfrentar o absurdo desta hora infeliz mesmo com ganas de voltar costas a tanto e tanto desconcerto. O pacto que assinei não foi com o azar das circunstâncias. Foi com a terra portuguesa. E continuo a sentir a terra debaixo dos pés, e a poesia continua a cantar dentro de mim. O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo.

COIMBRA,7 de Abril de 1975-Os estrebuchões que a pátria dá no hospital revolucionário a que a reduziram! Necessitada de uma clarividente terapêutica revitalizadora, ninguém esperava vê-la do pé para a mão transformada de norte a sul num desesperado corpo convulsivo. Mas somos assim: ou tudo ou nada. Ou amodorrados numa sonolência de morte,ou possuídos de uma agitação frenética. Ou catalépticos, ou atacados da doença de S. VITO. O espetáculo que damos neste momento ao mundo não é o de um povo que se esfoça por atualizar ousada e sensatamente a sua vida retrógrada. É o de um manicómio onde enfermeiros improvisados e atrevidos submetem nove milhões de concidadãos a um electrochoque aberrante e desumano.

-Bragança, 1 de Maio de 1975- Pareço um fiscal a percorrer a Pátria. Passo por Foz Côa, e apresso-me a ir ver se a igreja manuelina ainda se aguenta nos alicerces; chego aqui, e subo ao castelo, entro na Domus Municipalis, visito o museu, de coração apertado, não as tenha o diabo tecido; amanhã em Miranda, Deus sabe as desilusões que me esperam na rua da Costanilha. É que o Portugal que valia a pena, o Portugal original, o Portugal de rosto singular, está por um fio. Em cada terra resta apenas um vestígio. E são esses fragmentos de uma fisionomia própria que inventario incansavelmente. É com eles que os vindouros poderão reconstruir a nação que já houve. Lineu partiu também de um simples osso.

COIMBRA, 20 de Junho de 1975- Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro. Cuidavam que combatiam pelo futuro e, na verdade, assim acontecia, mas apenas na medida em que o sonhavam como se ele tivesse de ser coerente com a dignidade do seu passado de lutadores. O trágico é que um futuro sonhado não passa de uma ficção. O tempo é o lugar do inédito. O futuro autêntico é sempre misterioso e autónomo das premissas de que partiu. Quando chega, traz os seus valores, as suas leis, a sua gente, nem boa nem má. Traz os títeres que lhe convêm. Ou pior: os títeres a quem a hora convém.
Chaves,11 de Setembro de 1975

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura,
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?
Ah, Camões, que não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia...
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!...
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente.



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